Esferas da insurreição: Homeless e A morte também aprecia o jazz, de Edimilson de Almeida Pereira

Michel Mingote Ferreira de Azara
Universidade Federal de Juiz de Fora

Abstract

Considering the context of a new emerging form of power termed ‘Brutalism’ by the Cameroonian thinker Achille Mbembe and the concept of ‘spheres of insurrection’ developed by the Brazilian philosopher Suely Rolnik, this article examines the micropolitical dimension in the work of the contemporary Brazilian writer Edimilson de Almeida Pereira, specifically his recent works Homeless (2010) and A morte também aprecia o jazz (2023).

Keywords: Afro-Brazilian poetry; Black diaspora; Brutalism, Edimilson de Almeida Pereira

 

O grande rio sulcando a pele
Escurece na margem.
O que transporta não é carta
E comunica intempéries.
Indagamos à sombra
– o trabalho
da mão termina ou é sempre
um anúncio de viagem?  

Edimilson de Almeida Pereira, O rio e as coisas

 

Introdução

A partir do pensamento do filósofo camaronês Achile Mbembe, especificamente o conceito de Brutalismo (2020), que diz respeito à nova forma de poder emergida na atualidade, e a partir também do pensamento da filósofa Suely Rolnik (2018), sobretudo a noção de esferas da insurreição, estudaremos as obras Homeless (2010) e A morte também aprecia o Jazz (2023), do poeta Edimilson de Almeida Pereira. Almejamos compreender no contexto atual, no qual as práticas brutalistas de poder e dominação vigoram, como a literatura se configura enquanto forma de resistência, que se vale dos mesmos movimentos encetados pelo poder –como as práxis de depleção, fraturamento e fissuração, que analisaremos logo adiante– para se contrapor, via imaginário, a esta forma vigente de dominação , ou seja, como, pela via micropolítica, é possível vislumbrar as diversas esferas da insurreição gestadas no cerne da atividade poética do escritor.

Achile Mbembe compreende que o momento atual da história é dominado pelo páthos – entendido aqui enquanto disposição fundamental que atravessa uma época –  da demolição e da produção, numa escala planetária, de reservas de obscuridade (Mbembe 2020). Neste contexto, uma nova forma de poder e dominação teria emergido, sendo denominada pelo pensador de Brutalismo (Mbembe 2020).[i] Oriundo da arquitetura, o termo, na concepção do filósofo, é uma categoria política que remete aos processos pelo qual o poder, como força geomórfica, agora se constitui, se expressa, se reconfigura, atua e se reproduz por fraturamento, fissuração e depleção (Mbembe 2020):[ii]

Às lógicas de fraturamento e fissuração convém acrescentar também as do esgotamento e da depleção. Uma vez mais, faturamento, fissuração e depleção não se referem apenas aos recursos, mas também aos corpos vivos expostos ao esgotamento físico e aos mais variados tipos de riscos biológicos, não raro invisíveis (intoxicações agudas, cânceres, anomalias congênitas, distúrbios neurológicos, alterações hormonais). (…) A dialética da demolição e da ‘criação destrutiva’, na medida em que tem por alvo os corpos, os nervos, o sangue e o cérebro dos humanos, assim como as entranhas do tempo e da terra, está no cerne dos reflexos que se seguem. Brutalismo é o nome dado a esse gigantesco processo de despejo e evacuação, mas também de descarga dos recipientes e de esvaziamento das substâncias orgânicas. (2023 14-15)

As práticas de demolição, quebra, apedrejamento, pilhagem e esmagamento estão no cerne do Brutalismo em sua acepção política. Neste contexto, o alvo do Brutalismo neoliberal são os corpos, os nervos, o sangue e o cérebro dos humanos, assim como as entranhas do tempo e da terra (2023 15). O autor enfatiza que o Brutalismo, enquanto forma de dominação e poder, age diretamente sobre os corpos e os imaginários, deflagrando um processo de desmontagem, dissociação e demolição que visa “a transformação da humanidade em matéria e energia” (19).

Face a esta nova forma de poder e dominação neoliberal, caberia averiguar, na literatura, as diversas modulações do imaginário que deflagrariam esferas da insurreição (Rolnik 2018), formas de resistência que, no terreno da micropolítica, engendrariam novas linguagens, novos dispositivos e novos planos imaginários que subsomem novos modos de existência, novos modos de vida e de pensamento. Neste sentido, a esfera micropolítica diria respeito à elaboração de outras vias de apreensão do mundo, outras maneiras de ver e de sentir que produziriam outras narrativas possíveis, através da reapropriação da potência vital, que, por sua vez, fora reapropriada pelo colonial capitalístico. Dessa forma, consideraremos os livros Homeless (2010) e A morte também aprecia o Jazz (2023), do poeta brasileiro Edimilson de Almeida Pereira, para realizarmos a nossa leitura, que visa compreender como, pela via micropolítica, é possível vislumbrar as diversas esferas da insurreição gestadas no cerne da atividade poética do escritor.

 

Esferas da insurreição

Conforme salienta Rolnik (2018 141), é pela construção do comum que se coopera na insurgência micropolítica, e a intenção de insurgir-se micropoliticamente:

É a “potencialização” da vida: reapropriar-se da força vital em sua potência criadora. Nos humanos, a reapropriação da pulsão, depende de reapropriar-se igualmente da linguagem (verbal, visual, gestual, existencial etc.) […] Nesse processo de experimentação – em que se criam palavras, imagens, gestos, modos de existência, de sexualidade etc. -, os mundos ainda em estado larvar que se anunciam ao saber-do-vivo tornam-se sensíveis. (2018 132)

Segundo Preciado, na acepção de Guattari, a micropolítica diria respeito aos “âmbitos relativos à vida privada no modo de subjetivação dominante, que ficaram excluídos da ação reflexiva e militante nas políticas de esquerda tradicional: a sexualidade, a família, os afetos, o cuidado, o corpo, o íntimo” (2018 18). Por isso, o autor enfatiza que a revolução não se reduziria a uma apropriação dos meios de produção, mas incluiria e “baseiar-se-ia em uma reapropriação dos meios de reprodução – reapropriação, portanto, do saber-do-corpo, da sexualidade, dos afetos, da linguagem, da imaginação e do desejo. A autêntica fábrica é o inconsciente e, portanto, a batalha mais intensa e crucial é micropolítica” (2018 15). Ainda nas palavras de Rolnik (33), a fonte da qual o regime extrairia a sua força não seria mais apenas econômica, mas também intrínseca e indissociavelmente cultural e subjetiva – para não dizer ontológica, que lhe confere um poder perverso mais amplo, mais sutil e mais difícil de combater. Neste processo, é da própria vida que o capital se apropria. Por conseguinte, é neste sentido que aproximamos aqui as formas de dominação colocadas em prática pelo Brutalismo, na acepção de Mbembe,  com a noção de “cafetinagem” da pulsão vital, analisada por Rolnik. Em ambos os processos, trata-se da colonização do inconsciente, um regime brutalista que povoa todas as esferas da vida:

Se a base da economia capitalista é a exploração da força de trabalho e da cooperação intrínseca à produção para delas extrair mais-valia, tal operação – que podemos chamar de ‘cafetinagem’ para lhe dar um nome que diga mais precisamente a frequência de vibração de seus efeitos em nossos corpos – foi mudando de figura com as transfigurações do regime ao longo dos cinco séculos que nos separam de sua origem. Em sua nova versão, é da própria vida que o capital se apropria; mais precisamente, de sua potência de criação e transformação na emergência mesma de seu impulso – ou seja, sua essência germinativa –, bem como da cooperação da qual tal potência depende para que se efetue em sua singularidade (2018 32)  

A função do poder é, nas palavras de Mbembe (2022 14), mais do que nunca tornar possível a extração, o que exigiria uma intensificação da repressão, incluindo a perfuração de mentes e corpos:

fraturamento, fissuração e depleção não se referem apenas aos recursos, mas também aos corpos vivos expostos ao esgotamento físico e aos mais variados tipos de riscos biológicos (…) A dialética da demolição e da ‘criação destrutiva’, na medida em que tem por alvo os corpos, os nervos, o sangue e o cérebro dos humanos, assim como as entranhas do tempo e da terra, está nos reflexos que se seguem. Brutalismo é o nome dado a esse gigantesco processo de despejo e evacuação, mas também de descarga dos recipientes e de esvaziamento das substâncias orgânicas. (2022 14-15)

O extrativismo, enquanto prática econômica caracterizada pela retirada de elementos do meio natural –no contexto colonial e neoliberal do Brutalismo, diria respeito à extração dos recursos do inconsciente e da linguagem, assim como as práticas de fraturação, fissuração e depleção, vocabulário que Mbembe extraíra da mineração, uma das principais atividades econômicas no continente africano da época colonial. Assim sendo, a pulsão vital, a linguagem, o desejo, a imaginação e o afeto, passam por um processo de “cafetinagem”, que se configura enquanto dispositivo de extração da pulsão vital que opera no capitalismo colonial, capturando, assim, a pulsão de vida.

Face a esse estado atual de poder e dominação a literatura se configuraria como uma forma de resistência, que se valeria dos mesmos movimentos engendrados pelo poder – como as práxis de depleção, fraturamento e fissuração, por exemplo – para contrapor-se, via imaginário, a essa forma vigente de dominação. Nesse sentido, como nos ensina Pereira (2010), seria necessário um movimento de descida abissal ao cerne do mar, à sua medula – assim como procede a prática de fraturamento hidráulico, por exemplo, utilizado para extrair gás de rochas muito profundas, através de um processo de perfuração do solo – para fazer com que rastros/resíduos das histórias dos vencidos (Benjamin 2012) sejam trazidos à superfície: 

Cartografia I

o cultivo no mar

é devoração

: a cada movimento

 

de escuna

um fruto se desgasta

para intuir

 

a empresa que dirige

esse campo

é urgente revolvê-lo

 

desde à medula

– à superfície

o rascunho dos embates

revela muito &

pouco sobre o inferno

submerso (2010 47)

A nosso ver, esta seria a via micropolítica (Rolnik 2018) na qual seria possível vislumbrar as diversas esferas da insurreição gestadas no cerne da atividade poética.

 

Negroceno

Malcom Ferdinand, em Uma ecologia decolonial: pensar a partir do mundo caribenho, intitula de negroceno a era geológica de ocupação violenta da terra que configurou um habitar colonial, que extraiu a sua potência e economia do tráfico negreiro transatlântico e da escravidão colonial. Assim, negroceno “designa a era em que a produção do negro visando expandir o habitar colonial desempenhou um papel fundamental nas mudanças ecológicas e paisagísticas da terra” (2022 79). Ou seja, se trata de uma maneira brutalista de habitar a terra e de consumir os seus recursos, uma era “geológica na qual a extensão do habitar colonial e as destruições do meio ambiente são acompanhadas pela produção material, social e política de negros” (80). Neste contexto, ainda segundo o autor, os escravizados constituíam uma fonte energética fundamental, equivalente às energias fósseis contemporâneas: “tal como o petróleo, o gás, o carvão e a madeira, a modernidade também manufaturou uma energia negra” (80).

No entanto, se o negroceno pressupõe uma prática brutalista de dominação e exploração que se vale de práticas de fraturamento, de fissuramento, de depleção e de extração, para catalisar o tráfico negreiro, as mesmas práticas brutalistas serviriam de metáfora para os processos de insurreição micropolíticos no âmbito da literatura. Ou seja, escavação, fissurarão e fraturamento são práticas relacionadas ao imaginário negro que permitem que os vestígios ancestrais sejam desenterrados e trazidos à tona:

Escrever o negroceno pressupõe também desenterrar os vestígios daqueles a quem o mundo foi recusado. É nesse ponto que se desvela a importância de uma arqueologia da escravidão, que não se limita mais aos sítios aéreos, mas que se dedica à exploração do mundo enterrado. É preciso cavar para encontrar os cemitérios de escravizados e os vestígios dos ameríndios, descascar os arquivos para encontrar as vozes, falas, reconhecer práticas de dança e de canto em uma história de mundo. (2022 79)

Escrever o negroceno, nessa conjuntura, se coadunaria à nossa argumentação de que, em reação às violentas práticas brutalistas, seria possível engendrar novas linguagens, novos modos de existência, novos imaginários que, por sua vez,  configurariam as “esferas da insurreição” (Rolnik 2018), as possibilidades de resistência via linguagem, via imaginário poético. Assim, estes processos de “escavação e desenterramento” almejariam aquela reapropriação da linguagem mencionada por Rolnik, que se dariam através de múltiplos processos de experimentação/criação da linguagem que propiciariam a germinação de mundos ainda em estado larvar, ou seja, restituiriam ao imaginário negro, tudo aquilo que fora deixado à margem da história, como podemos observar no poema abaixo de Pereira (2010) intitulado Homeless:

Cartografia 1

a palavra sonar

 

traz à tona

o espólio que, um

dia corpo

atravessou o próprio

meridiano

 

cartografia II

o que foi lançado

às ondas

sobe ao maxilar

da história (Pereira 2010, passim)

 No poema acima de Pereira (2010) intitulado Homeless, a palavra sonar é aquela que emite ondas em direção ao oceano da história, fazendo vir à tona uma poética de rastros/resíduos (Glissant 1995) do imaginário da diáspora negra, que foram soterrados pelo tráfico negreiro.  Sonar é um instrumento usado para a localização de submarinos e também para detecção e localização de objetos no fundo do mar. A palavra sonar do poeta é aquela que é extraída à fórceps do mar da história:

Homeless

A memória

Coleciona

lapsos

Por isso

Assaltá-la
com

A linguagem extraída a fórceps

Do mar
: ao norte (2010 53)

O próprio Edimilson de Almeida Pereira, em seu projeto teórico de análise de uma estética de base afrodiaspórica na literatura brasileira, propõe-se a utilizar um viés que, nas palavras do autor, pode ser entendido como uma espécie de sonar: “[u]ma vez direcionado às camadas profundas das relações sociais, políticas e culturais que nos conformam, suas ondas, no retorno, nos devolverão alguns sinais que nos permitirão articular um discurso analítico sobre as realidades tangenciadas durante o mergulho” (Pereira 2017 43). No poema intitulado “Lições caribenhas”, de A morte também aprecia o Jazz, Pereira mais uma vez evoca a necessidade do movimento de desenterramento, de ir à fundo na história para trazer à tona o imaginário que fora soterrado:

Exumar e tecer
A dália negra
Com o mar
Ao fundo

Mesmo submerso
Um crime
aponta
o criminoso

(…)

Exumar e tecer
A outra flor
Que há em toda
flora

Exumar a Dália negra, neste contexto, refere-se tanto à necessidade de evocar um dos assassinatos mais famosos da história dos Estados Unidos que nunca fora solucionado, o da atriz americana Elizabeth Short,[iii] quanto à própria atividade poética, que exuma e tece outra flor, que germina outra linguagem e tece esferas de insurreição micropolítica. Desenterrar a história de uma atriz brutalmente assassinada, é exumar mundos possíveis, mundos larvares, que se contraporiam às práticas brutalistas ou ainda, conforme o pensamento de Agustoni, que inaugurariam processos de escavação no oceano da História:

há, isto sim, outro movimento subtendido, que consiste na raspagem da história, como se escavando o passado pudéssemos descobrir novas perspectivas que mudam não só a interpretação dos fatos ocorridos, mas também dos fatos do presente (…) esses signos, depositados no tempo, são como uma escrita cuja decifração é trabalhosa, demorada (…). Essa escavação produz novos sentidos, inesperados, e tenta recriar (mesmo que não seja de forma linear e unívoca) o elo entre uma história escrita e aprendida e outra, sonegada, e que, por ter sido silenciada oferece múltiplas pistas abertas de interpretação. (2013 148)

Agustoni estuda os poemas de Pereira com base na categoria da mineração. É neste sentido que compreendemos que o processo de escavação, oriundo da atividade mineradora, aparece como fundamental para a leitura da poética de Pereira, que se configura como uma poética das profundezas, que visa trazer à tona o imaginário da diáspora negra, como aquele ligado aos diversos corpos que forma lançados dos navios negreiros durante a travessia transatlântica:  

Cemitério marinho: 
embarcados, às vezes
Nos desembarcam
Antes da ilha, em meio
Às ondas
Como sacos de aniagem
Entregues ao calunga
Grande, o que resta?  (2010 79)

Conclusão

As práticas brutalistas analisadas por Mbembe, pressuporiam também, nas palavras do pensador, a universalização da condição negra, o devir-negro de uma enorme parcela da humanidade atualmente confrontada com perdas excessivas e com uma profunda síndrome de esgotamento das suas capacidades orgânicas, como por exemplo, pode-se observar atualmente na faixa de Gaza:

e toda uma parcela da humanidade é reduzida a viver sua existência rodeada de arame farpado, como se estivesse em jaulas. (…) Da humanidade enjaulada, a Palestina em geral e Gaza em particular se tornaram os ícones por excelência. São os grandes laboratórios de um regime de brutalização em vias de consumação tecnológica que busca se globalizar. O objetivo é de fato generalizar e difundir, em escala global, os métodos aprimorados no contexto da gestão de ‘territórios ocupados’ e de outras guerras de predação. Esse regime de brutalização se baseia na fissuração extrema de espaços deliberadamente tornados inabitáveis, na intensa fragmentação de corpos constantemente ameaçados de amputação, forçados a viver em buracos, muitas vezes sob escombros, nos interstícios e fendas instáveis de ambientes sujeitos a todo tipo de devastação, ao abandono, em suma, à dissecação universal.

O devir-negro implica que, pela primeira vez na história humana, o substantivo negro deixa de remeter unicamente à condição atribuída aos povos de origem africana durante a época do primeiro capitalismo –predações de toda a espécie, destituição de qualquer possibilidade de autodeterminação e, acima de tudo, das duas matrizes do possível, que são o futuro e o tempo–. Refugiados, imigrantes, desempregados, desabrigados, etc, estariam todos sob a égide da necropolítica, política da morte cuja práxis última visa o controle, por parte do Estado neoliberal, sobre quem deveria viver e quem deveria morrer, como se observa no caso supracitado da faixa de Gaza.

            Neste contexto, o devir-negro implicaria na desracialização de uma parcela da humanidade há séculos subalternizada. No entanto, em países cujas práticas ainda  seguem racializando a sua população, continua sendo importante o trabalho de modulação do imaginário negro, ancorado nas bases culturais e filosóficas de movimentos como a Negritude, surgida nos anos de 1930, com os poetas afrodiaspóricos Aimé Césaire, Léon Gontram-Damas e Léopold Senghor, ou o Afrocentrismo, ideologia dedicada ao estudo da história africana que teve na figura do Jamaicano Marcus Garvey sua principal voz na primeira metade do século XX.

Dito isso, caberia ainda pontuar que Pereira, autor negro brasileiro, cuja vasta obra literária dialoga em diversos momentos com os movimentos acima referidos – caso por exemplo do livro Homeless e também Caderno de retorno – ao mesmo tempo apresenta uma poética aberta a outros imaginários, caso do recente A morte também aprecia o Jazz, que, ao transitar por diversas referências, de Sycorax a Exu e a Wifredo Lam, de Jean-Claude Charles à Nereida, incorpora elementos da cultura afrodiaspórica em um diálogo aberto e rizomático com diversas manifestações culturais amefricanas (Gonzalez 1988). Nesse sentido, as esferas da insurreição, neste caso, seriam visíveis não apenas no trabalho que se configura considerando o imaginário ancorado em movimentos como a Negritude, mas na possibilidade de escavar e encontrar, no fundo da linguagem, as raízes rizomáticas do imaginário Amefricano:

Dentro do que sabíamos

Outro saber

Era possível (2023 14)

            De acordo com a cosmologia Yorubá, “Exu matou um pássaro ontem com uma pedra que só jogou hoje”. Tal ditado interpretaria a capacidade de Exu de subverter o tempo, indicando a possibilidade de reinventar o passado através de uma ação no presente. De igual modo, a literatura negra brasileira contemporânea também busca reinventar o passado, trazer à tona os rastros/resíduos (Glissant 1995) de memórias coletivas a serem reativadas através do trabalho poético com a linguagem. Assim sendo, a partir do pensamento do filósofo camaronês Achile Mbembe, em especial o conceito de Brutalismo (2020), que diz respeito à nova forma de poder emergida na atualidade, e também do pensamento da filósofa Suely Rolnik (2018), sobretudo a noção de esferas da insurreição, buscamos compreender, na obra de Edimilson de Almeida Pereira, as diversas facetas de resistência engendradas pela sua poética, face às práticas brutalistas de poder e dominação vigentes – como as práxis de depleção, fraturamento e fissuração, analisadas por Mbembe –. Neste contexto, compreendemos que é pela via micropolítica que é possível vislumbrar as diversas esferas da insurreição gestadas no cerne da atividade poética do escritor. Por fim pretendemos, com este ensaio, lançar luzes sobre as possibilidades de resistência da literatura na atualidade, sobretudo no que tange à escrita de autores negros brasileiros, modulada sobre o imaginário afrodiaspórico.

 

Obras citadas

  • Agustoni, Prisca. O atlântico em movimento: signos da diáspora africana na poesia
  • contemporânea de língua portuguesa. Mazza edições, 2013.
  • Benjamin, Walter. “Teses sobre o conceito de história”. In Obras Escolhidas Vol. 1,
  • Magia e técnica, arte e política. Brasiliense, 2012. Pp. 241-252.
  • Ferdinand, Malcolm. Uma ecologia decolonial: pensar a partir do mundo caribenho.
  • Ubu Editora, 2022.
  • Gonzalez, Lélia. “A categoría político-cultural de amefricanidade”. In Tempo brasileiro
  •  n.92/93, jan/jun 1988, pp. 69-82.
  • Mbembe, Achile. Brutalismo. N-1 Edições, 2023.
  • —. Crítica da Razão negra. N-1 edições, 2018.
  • Pereira, Edimilson de Almeida. Homeless. Mazza, 2010.
  • —. Entre Orfe(x)u e Exunouveau: análise de uma estética de base afrodiaspórica na
  • literatura brasileira. Azougue editorial, 2017.
  • —. A morte também aprecia o jazz. Fósforo, 2023.
  • Rolnik, Suely. Esferas da insurreição: notas para uma vida não cafetinada. N-1 edições, 2018

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[i] Brutalismo: é um estilo arquitetônico que surgiu durante a década de 1950 no Reino Unido, entre os projetos de reconstrução do pós-guerra, mas comumente conhecido por sua presença nas nações comunistas do pós-guerra. Os edifícios brutalistas são caracterizados por construções minimalistas que destacam os materiais de construção e os elementos estruturais em detrimento do design decorativo. O estilo recorre comumente a concreto ou tijolo exposto e sem pintura (cf: https://www.estilosarquitetonicos.com.br/arquitetura-brutalista. Acesso em: 08/09/2024).

[ii] O fraturamento hidráulico é utilizado para extrair gás de rochas muito profundas e pouco permeáveis. Consiste na perfuração de um poço vertical no interior do solo, a milhares de quilômetros

[iii] Uma aspirante a atriz de 23 anos que foi brutalmente assassinada no ano de 1947 e teve seu corpo deixado em um terreno na cidade de Los Angeles.