ÁZARA, Michel Mingote Ferreira, CLIMENT-ESPINO, Rafael (orgs.). Relações étnico-raciais na literatura brasileira do século XXI: Textos e contextos.  Belo Horizonte: Tradição Planalto, 2023, 151 p.

Resenha de Juliana Andrade de Lacerda, Escola de Belas Artes, Universidade Federal de Minais Gerais


Não podemos pensar as questões raciais sem lembrar o período colonialista, entre os séculos XVI e XIX, durante o qual os escravizados foram obrigados a sair de sua terra natal, levados para outros continentes nos navios tumbeiros. Muitos morreram na travessia. Alguns, porém, resistiram e se fixaram na nova terra, transmitindo para os seus descendentes as tradições dos povos africanos e fundindo duas culturas –a da região de onde vieram comado localpara onde foram levados. Esse sincretismo cultural pode ser comprovado nos diversos artigos apresentados no livro Relações étnico-raciais na literatura brasileira do século XXI: Textos e contextos, organizado pelos professores Michel Mingote Ferreira de Ázara e Rafael Climent-Espino. Nos oito artigos que compõem a publicação, os autores discutem sobre literatura, teatro, poesia e performance, enfatizando principalmente as questões de raça, gênero e classe.

O primeiro artigo, “A problemática racial na literatura brasileira do século XXI em contexto”, de Michel Mingote Ferreira de Ázara e Rafael Climent-Espino, trata do movimento transcultural e transnacional da Negritude, que surgiu em Paris na década de 1930, e a tomada de consciência da negritude em diversos países das Américas. Nesse período, deu-se o início de diversos movimentos artísticos de vanguarda nos Estados Unidos,  como o jazz; o correu também o indigenismo na literatura haitiana e o Negrismo cubano de Nicolás Guillén. No contexto do Romantismo brasileiro, Castro Alves, Luiz Gama e Maria Firmina dos Reis manifestavam uma consciência dos valores negros e denunciavam satiricamente as mazelas dos brancos, não escondendo suas origens. Portanto, a produção estético-cultural das Américas foi marcada pelos diversos movimentos de luta do povo negro, que se reflete nas artes poético-literárias.

A arte das Américas continua sendo influenciada por esse sincretismo cultural. Nela, é possível encontrar diversas exposições, poemas e romances que tratam da temática negra –não esquecendo da grande contribuição das mulheres negras na literatura brasileira, o que foi tematizado no quinto artigo, “Um olhar a partir das poéticas pretas”, de Marcos Antônio Alexandre, que ressalta a contribuição de diversas mulheres negras, como a professora Lélia Gonzalez, para a política e a valorização da amefricanidade e do pretuguês, como linguagens brasileiras. Há, portanto, um reconhecimento da influência das diversas línguas africanas que contribuíram para o português do Brasil e para o reconhecimento de uma produção literária emancipatória dos descendentes dos africanos. Djamila Ribeiro (2017) ressalta a importância do trabalho de Gonzalez, “ao evidenciar as experiências das mulheres negras na América Latina e no Caribe. Existe um olhar colonizador sobre nossos corpos, saberes, produções e, para refutar esse olhar, é preciso que partamos de outros pontos” (Ribeiro, 2017, p. 35).

As expressões de raça, classe e gênero são discutidas no artigo “Vaga Carne ou sobre como o teatro de Grace Passô tece imagens fabulares”, de Soraya Martins Patrocínio. A dramaturga e atriz mineira tematiza a violência, a morte, a solidão e a falta de memória e de futuro para mulheres invisibilizadas pela sociedade brasileira, além das possibilidades de sobrevivência dessas vozes negras periféricas. O discurso da autora, atravessado pela violência e a repressão, aborda os corpos de mulheres e suas vivências nas sociedades onde o machismo e o racismo estão presentes, principalmente as que foram afetadas pela colonização e pela escravização dos corpos negros.

Passô busca meios alternativos para tomar as rédeas de sua existência no mundo. Com seus gestos e movimentos, passa de consumidora de modelos de fabulação prontos para produtora de composições artísticas singularese bem-humoradas. Ela apresenta uma fala singular e ritmada ao tratar da miséria humana com beleza e sabedoria.

O tema das artes cênicas também está presente no artigo “A construção conceitual de raza: propostas teóricas”, de Ana María Gómez-Bravo, que trata das experiências diaspóricas negras para refletir sobre a eurocentralização da cultura branca. Ao retornar ao passado e reconfigurar a imagem preconceituosa do Estado, da Igreja e da Ciência, ela propõe redefinir os conceitos de raça e racismo, uma vez que em tal concepção os escravizados eram tratados como pessoas anônimas e sem alma, pela Igreja e pelo Estado, o que os remetia à condição das coisas naturais, como os animais.

A crença religiosa foi convertida em diferença física, e a linguagem incorporou o termo “negritude”, como se fosse ligada à sujeira, ao Inferno e ao pecado. Portanto, é necessário redefinir a terminologia “raça” na atualidade, além de se buscar formas de reparar a violência sofrida pelas minorias racializadas, como as que houve nas conceituações materialistas e biológicas na Alemanha nazista. Assim, é preciso que a sociolinguística e a história produzam novos estudos, para redefinir os termos “raça” e “racismo”.

As questões do racismo e dos quilombolas foi discutida no artigo “Quilombos, quilombolas e quilombismo: raça, espaço e terra em Torto Arado, de Itamar Vieira Junior”, de Rafael Climent-Espino. O autor estabelece relações entre espaço, raça e poder para falar sobre as comunidades afrodiaspóricas nas Américas, tematizando estratificação, classe, raça e gênero e evidenciando a questão do deslocamento dos negros, que vieram do continente africano como mercadoria e foram vendidos como mão de obra escrava nas fazendas de senhores brancos. Os escravizados trocavam de território constantemente, uma vez que poderiam ser vendidos para outros senhores de regiões diferentes para trabalhar na lavoura e na mineração. Quando conseguiam, para escapar dos maus tratos, refugiavam-se em quilombos, para ter mais liberdade, onde poderiam dançar, cantar e exercer sua religiosidade.

A história do romance analisado se passa em um território quilombola. Os personagens moram na fazenda Água Negra, no estado da Bahia; nesse espaço alternativo, constroem suas casas de barro ou de pau a pique. A narradora da primeira parte –Bibiana, então com sete anos, e sua irmã mais nova, Belonísia, com seis, descendentes de escravizados –, movida pela curiosidade, encontra nos pertences da avó Donana uma mala. Ao remexer nos guardados, as irmãs encontram uma faca de cabo de marfim e cortam a língua; uma delas perde a fala depois do acidente. Essa simbologia do corte da língua pode ser remetida ao silenciamento das mulheres negras, tema recorrente na literatura e na arte brasileira, uma vez que as mulheres negras foram silenciadas durante a escravidão.

Hoje, as comunidades quilombolas vivem uma instabilidade habitacional. As que sobreviveram, lutam para não sair de sua terra, pois nesse local preservam sua cultura e identidade familiar. No entanto, alguns quilombolas tem de deixar sua comunidade, pois não tiveram suas terras demarcadas pelo governo. Dessa forma, a exclusão é uma constante na vida dos descendentes de escravizados. O deslocamento persiste, sem moradia fixa, sobrevivem nas favelas das metrópoles, em casas ainda precárias, de barro, lona, madeira. Essas comunidades desterritorializadas estão sempre mudando de uma região para outra. Muitos dos que dela fazem parte foram expulsos de suas terras pelo agronegócio, além de estar mais sujeitos às catástrofes climáticas.

As agruras do escravismo são discutidas no artigo “Abliterações, de Paulo Dutra: entre a poética e a política da sobrevivência”, de Luiz Henrique Oliveira. O autor destaca a importância dos eixos temáticos da literatura de autoria negra no Brasil. Também destaca a importância da produção dos afrodescendentes, pois seria importante dar voz aos que foram silenciados durante muito tempo. Dessa maneira, segundo Ribeiro (2017), ao evidenciar as problemáticas negras, não estaríamos restringindo a troca de ideias e impondo a visão apenas de quem pertence a determinada classe, mas ressaltando a necessidade de que os negros também tenham voz e possam expor suas experiências. Ao destacar a arte produzida pelos excluídos, a partir da visão dos escravizados e de seus descendentes, podemos dar voz aos silenciados, que durante muito tempo não puderam expressar seus sentimentos. Essas vítimas desprivilegiadas e marginalizadas, como as mulheres e os negros, podem, assim, sair de uma posição submissa e mortificada, e assumir a de um levante, insurgindo-se contra a opressão e erguendo os corpos para a vida e a esperança.

Uma vez que os processos culturais foram brutalmente interrompidos e silenciados pelo poder patriarcal, autoritário, branco e burguês, é necessário que a conscientização antirracista em frente a ordem dominante e produza uma lógica mais humanizada e menos preconceituosa. A literatura e a arte têm papel fundamental no letramento antirracista, para contar a história a contrapelo, a partir da perspectiva dos vencidos – e não apenas dos vencedores.

O movimento feminista negro propõe, dessarte, construir um novo olhar sobre as fraturas da cultura escravocrata colonialista, ao produzir uma nova história das mulheres negras e de suas formas de resistência, que vêm sendo construídas a partir de aprendizados e lutas contra a dominação e a exploração de um sistema colonial escravista e patriarcal. Considerando que o racismo estruturou o colonialismo por meio da escravização e consolidou as práticas racistas, é lícito afirmar que o contrato social entre brancos e negros não foi restabelecido. Nesse viés, corpos negros ainda são considerados inferiores e estão sujeitos a vários tipos de violência. Por isso, ressaltamos a importância do debate sobre as questões raciais e de gênero apresentadas no livro Relações étnico-raciais na literatura brasileira do século XXI, para que o movimento negro se fortaleça e a história de nossos antepassados escravizados seja resgatada e para que as problemáticas do racismo e do machismo sejam enfrentadas por toda a sociedade.

Trabalhos citados

RIBEIRO, Djamila. O que é lugar de fala? Belo Horizonte: Editora Letramento, 2017.